domingo, 14 de outubro de 2007

Pensar em Português

Inicio este blogue com o meu discurso proferido no encerramento do
I Congresso Internacional Luso-Galaico-Brasileiro organizado pelo Centro de Estudos da Universidade Católica Portuguesa nos dias 9,10,11 e 12 de Outubro de 2007



Sem querer imitar a iniciativa que decorre en Espanha, a título oficial http://www.pensarenespan-ol.es/,
penso que Portugal e o Brasil não deveriam deixar de assumir a responsabilidade que lhes cabe de afirmar o português como língua de pensamento e de ciência.

A irmandade da fala e da cultura galega justifica que nos acompanhe no nosso desígnio

Do Caminho de Santiago ao Cruzeiro do Sul:
Pensar em Português e em Galego


José Esteves Pereira
Presidente do Instituto de Filosofia Luso Brasileira

Ex. mos Senhores
Presidente do Centro Regional do Porto da Universidade Portuguesa,
Professor Joaquim Moreira Azevedo
Presidente da Comissão Científica do Congresso
Professor Arnaldo de Pinho
Caros Membros da Comissão Científica e representantes de Portugal, do Brasil e da Galiza
Profs, António Braz Teixeira, António Paim e Xosé Luís Barreiro Barreiro



Gostaria de dizer algumas palavras aqui, no Porto, na meia hora que conto usar, para recordar um trajecto da demanda empreendida, há mais de duas décadas, por brasileiros, portugueses e galegos, invocando as constelações tutelares que sempre nos guiaram, num abraço de razão atlântica e expressão de um permanente renascimento de meditação comum- até onde as línguas portuguesa e galega pensam.
A Universidade Católica Portuguesa, ao organizar o Congresso que agora termina, consubstancia um projecto e dá alento para a caminhada. Importa, muito a propósito, salientar o que se ficou a dever, à Faculdade de Filosofia de Braga, em 1981, com a realização do I Congresso Luso-Brasileiro de Filosofia.
Como salientou António Braz Teixeira, daquele Congresso sairia “uma decisão de transcendente importância para o mundo filosófico de língua portuguesa, a da realização, em conjunto, por uma ampla e qualificada equipa de professores, estudiosos e pensadores brasileiros e portugueses, de uma enciclopédia filosófica, a qual veio a concretizar-se, entre 1989 e 1992, pela publicação dos cinco volumosos tomos da Logos-Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia, de cujo corpo directivo faziam parte, entre outros, António Paim, Francisco da Gama Caeiro, Lúcio Craveiro da Silva e José Bacelar e Oliveira”[1]
Estas duas realizações e, particularmente, a convergência de investigação luso-brasileira moldada na Logos abria-se, significativamente, também, ao pensamento hispânico, explicando, em parte, o encontro e a possibilidade de realizar de uma forma mais próxima e convivencial, o diálogo brasileiro, que tem sido, também, luso galaico e se deseja mais amplo ainda.
Nos dois lados do Atlântico se atendeu ao pensamento dos dois povos, irmanados no destino de pensar português. Embora, há mais tempo se tivesse iniciado um diálogo de pensamento, nem sempre se alcançara uma plataforma de estudos sistemáticos e comparativos sobre autores, temas, correntes, grupos ou escolas.
E é por esta circunstância que, no encerramento deste Congresso Internacional, se justifica sublinhar algumas motivações que permitiram a confluência de temas e problemas, encorpando os debates e as realizações. Se, porventura, se reunisse num corpus o resultado de trabalhos individuais e colectivos que permitiram um debate aprofundado do pensamento português, brasileiro e galego acompanhado da projecção desses interesses filosóficos em âmbito de estudos hispânicos talvez fosse motivo de espanto verificar que não houve, antes, em Portugal e no Brasil, um projecto continuado semelhante, de delineamento e de sistematização de labor reflexivo em língua portuguesa..
Deixo para uma história que já se vai justificando fazer, as peripécias, as pequenas coisas sobre os Colóquios luso-brasileiros que me coube ajudar a realizar. E, no entanto, de muitas, aparentemente, pequenas coisas se constróem as grandes.
Neste momento salientarei, tão só, alguns aspectos que me parecem relevantes no nosso caminho.
O I Colóquio Tobias Barreto, realizado em Lisboa, em 1990, assim se designou por respeito a uma efeméride (que veio a ser comemorada com pequeno atraso) inaugurando uma metodologia monográfica, não esquecendo, em todo o caso, um debate necessário, que então ocorreu, também: o de uma meditação sobre identidades filosóficas portuguesa e brasileira.
Meditação ociosa a das filosofias nacionais? Ou a de pensar em português? A constatação de Heidegger, lembrada recentemente, por Reyes Mate[2] de que só se podia pensar em grego ou em alemão, embora chamando a atenção para o facto de o autor de Sein und Zeit ter em vista, apenas, o pensamento conceptual, não esquecendo, contudo, que deveria ser tomado a sério o que o ultrapassa: a literatura, a mística, enfim, a linguagem na sua plasticidade criadora. Esta meditação encerra um desafio para nós. Trata-se de pensar em comunidade cultural portuguesa, galega e brasileira o que deve ser, o que pode ser, o nosso desafio de universalidade, abraçando o conceptual e o não conceptual, as ideias e as crenças, a razão e o mistério, a perspectiva situada conjugada com a cidadania universal do pensamento.
Lembro, a propósito, por um lado, as palavras marcantes de André Torres Queiruga, no I Colóquio sobre a Saudade que organizamos em 1995, a propósito daquele sentimento e filosofema como “Stimmung” radical no apelo que contem de universalidade:
“ A saudade é um tema entrañable(...), pertence xa ós carateres especificos da cultura luso-galaico-brasileira. Pero pouca seria a súa fondura cultural, se ficase pechada nunha estreita particularidade, sem que polas súas raices comunicase coas grandes inquedanzas da cultura universal.”[3].
Por outro lado, Miguel Reale, diria que quando pesasse “no espírito dos nossos pensadores toda a força do presente, não como instante fugaz, mas como a concreção do nosso passado e do nosso futuro; quando vivêssemos “realmente inseridos na problemática das nossas circunstâncias, natural e espontaneamente, sem sentirmos mais a necessidade de proclamá-lo a todo o instante” surgiria “essa atitude nova de sabemos conversar sobre nós mesmos e entre nós mesmos, recebendo ideias estrangeiras como acolhemos uma visita que nos enriquece, mas não chega a privar-nos da intimidade do nosso lar”[4].
Miguel Reale, num dos volumes da Colecção Razão Atlântica, editado pelo Instituto de Filosofia Luso Brasileira, defendeu não só a essencialidade da filosofia como autoconsciência de um povo mas, recordou, também, que a causa da filosofia era a causa da liberdade[5], desígnio que nos deve mover no sentido de abertura que temos imprimido aos nosso encontros e ao diálogo empreendido, lembrando que as análises a que se procedeu não foram de natureza ritual ou comemorativa, mesmo quando nos servimos desse facto para nomear os colóquios levados a cabo.
Havia e há muitos problemas, não só sobre a natural condição do pensamento luso-brasileiro, mas também da universalidade especulativa que da circunstância luso-brasileira emergiu. E isso manifestou-se nos propósitos iniciais. Seria ocioso tentar dar aqui, mesmo que palidamente, os momentos em que se manifestou essa universalidade especulativa.
O tema Natureza e Cultura que esteve muito presente no I Colóquio, de 1990, na Universidade Nova de Lisboa, em torno de Tobias Barreto, deu ensejo a que se perspectivasse um mundo mais problemático da cultura ao arrepio da depurada cultura intelectualizada de raiz europeia. O pensador sergipano via a cultura como instância libertadora perante a dura realidade existencial, a agressão do meio e da própria sociedade” ou, nas próprias palavras de Tobias, a percepção da cultura como “antítese da natureza” na medida em que ela importa uma mudança do natural, no sentido de fazê-lo belo e bom” [6].
O repto estava lançado sobre um debate que desafia, a meu ver, a própria questão da filosofia ou a sua desinência mais grega ou alemã justamente porque colada a uma visão cultural estrita que escamoteia toda a vida e sentido que existe para lá do conceito. Ou, para o tempo do nosso primeiro pensador estudado a própria positivação do “facto” o que o conduz a agarrar-se, antes ao “manto de Kant” e fugir a todo o dogmatismo para encontrar a disposição natural e inerradicavel do espírito” como comentava, oportunamente, António Paim sobre o significado do pensador nordestino para a filosofia brasileira[7].
Não seria possível transmitir-vos, em tão pouco tempo, o que de renovador se verificou naquele primeiro Colóquio. Em singela homenagem, lembro as pessoas que então estiveram presentes com as suas comunicações em torno de Tobias Barreto e do tema Natureza e Cultura: Miguel Reale, António Paim, Francisco da Gama Caeiro, Luis Alberto Cerqueira, Luis António Barreto, Vamireh Chacon, António Braz Teixeira, Aquiles Cortes Guimarães, Constança Marcondes César, Ana Maria Moog, Joaquim Cerqueira Gonçalves, Paulo Borges e Pedro Calafate.
Antes de recordar, brevemente, a reunião subsequente gostava de atender a uma intervenção oportuna de Cerqueira Gonçalves, pois que o conjunto de temas e de problemas em debate sempre tiveram presentes a dimensão cultural da especulação. Dizia Cerqueira Gonçalves que era verdade que “nem sempre a filosofia se assumiu como cultura, mas ela é fundamentalmente cultura” e de “que a cultura atingia o seu maior sentido pela filosofia”[8], porventura em sentido análogo ao de Reale, considerando a filosofia como autoconsciência de um povo. A esta luz melhor se compreenderão as palavras de dois dos intervenientes no Colóquio realizado em 1990, em Recife e na Baía. Assim, na apresentação do Colóquio Antero de Quental, na Fundação Joaquim Nabuco, onde paira a memória tutelar de Gilberto Freyre, Luiz António Barreto, a quem presto aqui a minha homenagem pelo muito que lhe devemos para que o nosso caminho de Santiago chegasse até às terras da “vera cruz” sublinhava a “resposta prática, objectiva, concreta, do interesse que os intelectuais brasileiros tem de reflectir o Brasil, buscando vê-lo na interface do outro, que no caso é Portugal, como poderia ser os parceiros latino americanos que guardam no estigma da história raízes comuns”[9]. Tendo no horizonte a proximidade das comemorações colombinas de 1992 e um pouco mais distante, mas já desejadas, as comemorações da descoberta do Brasil, os propósitos de uma dimensão luso-brasileira, mas também universalmente hispânica, estava, também presente. Esse foi, aliás, o desígnio, de vistas largas, desde o início, daquele a quem se deve o maior entusiasmo na criação dos colóquios, Francisco Gama Caeiro.
Permitam-me, a este propósito, dizer que a significativa abertura a uma matriz hispânica, ou ibérica, se repercutiu, até hoje, no incontornável legado que representam os Seminários de Historia de la Filosofia Española e Iberoamericana, na Universidade de Salamanca, através do convite a alguns de nós para que déssemos a conhecer o pensamento filosófico de Portugal e do Brasil, como teve ocasião de registar José Luis Mora[10].
Mas, voltando, então, à nossa segunda estação do caminho, recordo palavras de Paulo Mercadante ao sublinhar um propósito:.
“Guia-nos, pois, a busca de um valor comum, movidos por empatia, no afã de recolher os contributos para definir, nos limites possíveis à interdisciplinaridade, um elo inconsutil como civiltà da cultura luso brasileira”[11].
Todo o âmbito da gestação do intercâmbio que se aprofundou, até hoje, e assume, aqui, no Porto, um momento decisivo e renovador, era suficiente, então para, nas considerações de Paulo Mercadante, abranger realidades mais fundas:
“Quanto a nós, a cultura luso brasileira permaneceu subjacente, mesclada ao material etnográfico, tanto indígena quanto africano, cujo consumir se processa necessariamente no correr dos séculos”[12].
Cumpre recordar neste momento, com saudade, António Quadros, que pela última vez participou nos nossos colóquios. O seu entusiasmo no desenho do projecto que se ia afirmando foi decisivo.
Entretanto, as raízes espaciais de uma cultura e a sua projecção exigiam, também, por igual, a invocação de raízes no tempo, em busca de identidade essencial. Esse desiderato viria a concretizar-se na Baía, através da atenção prestada ao pensamento de D. Duarte, o régio autor do Leal Conselheiro portador de um apelo fundo de estabelecimento originário de conceitos de pensar num português que se abria à linguagem especulativa. Na tela do tempo emergem memórias e recordações. Por um lado, a quantidade das ocorrências, por outro, a qualidade dos momentos mais perduráveis, aqueles que sempre nos fazem sentir mais realizados. E que nos obrigam, também.
Em 1992, por ocasião do Colóquio Tobias Barreto, dedicado a Domingos Gonçalves de Magalhães seria fundado, por 12 brasileiros e 12 portugueses, o Instituto de Filosofia Luso-Brasileira que viria dar visibilidade e estruturação institucional aos colóquios que se ia realizando, alternadamente, em Portugal, sob a égide de Tobias Barreto, e no Brasil sob a de Antero de Quental.
Entretanto, a escolha de Domingos Gonçalves de Magalhães significava, também, além de se abordar todas as vertentes do poeta e pensador, dar conta da brasilididade resgatadora de que se reveste a sua escrita e que, implicitamente, é portadora do problema da origem e da identidade do pensamento brasileiro.
O estudo comparativo, aprofundado e sistemático exigia que se retivessem pontos de partida que não eram tanto o da diferenciação subjacente ao problema das filosofias nacionais, magistralmente possibilitado pela discussão do texto de António Paim, que fora apresentado e discutido, em Lisboa, dois anos antes mas, igualmente, o entendimento do termo ad quo do que fosse pensamento brasileiro e da sua substância. Questão ainda em debate, aliás, se tivermos em conta ou a emancipação espiritual que constitui o labor especulativo e pedagógico de Silvestre Pinheiro Ferreira no âmbito da corte fluminense, pré- independência (a partir das suas Prelecções Filosóficas iniciadas em 1813), ou os propósitos empenhados de emancipação cultural do Brasil nação, de Domingos de Magalhães.
Francisco da Gama Caeiro, que seria eleito para Presidente do Instituto não esqueceria o aprofundamento de raízes que importavam tanto a portugueses como a brasileiros.
“...desejaria vincar a presente conjuntura histórica de uma convergência cultural específica, que possibilita nova fase de trabalhos sob o estímulo, em Portugal, do Instituto de Filosofia Luso Brasileira e na Pátria irmã, do Instituto Brasileiro de Filosofia, para o estudo em comum de nossas raízes e heranças filosóficas, para aprofundamento das respectivas identidades nacionais como suporte de um pensamento especulativo, inquirindo quanto nos aproxima e quanto nos diferencia”[13].
Um pensador visceralmente portuense encontraria, entretanto, o devido acolhimento no Brasil, no ano seguinte, tendo sido objecto de estudo em sessões realizadas em Aracaju e no Rio de Janeiro. Resgatava-se, assim, debaixo dos céus da Crux Australis, o autor do Brasil Mental.
O esforço empreendido para um melhor conhecimento do Brasil Mental e do Portugal Mental ia dando os seus frutos. Em 1994, na Universidade dos Açores, foi não só possível conhecer melhor “o literato brasileiro, de nome arrevesado, Sílvio Romero”, como anunciara Bruno mas compará-lo, também, com Teófilo Braga.
Da fecundidade dos estudos sobre os dois pensadores positivistas falam as Actas. Deixo em grata recordação, apenas, uma anotação de Gustavo de Fraga que, por si só, justifica a dimensão e a franqueza do diálogo que temos procurado manter:
Este momento açoriano teve um particular significado, também pelo balanço e prospectiva de Miguel Reale, através de uma vibrante intervenção que intitularia Rumos da Filosofia Luso Brasileira. Saliento da sua meditação o que nos disse sobre a unidade da língua:
“Destarte, quando nós brasileiros recebemos a língua portuguesa, recebemos o nosso sentido humano de ser. Porque não meditar sobre este facto fundamental? Por que não indagar das razões de ser da nossa linguagem? Há poucos meses, tocou-me analisar a palavra “experiência” e fiquei surpreso e surpreendido ao verificar a riqueza da língua portuguesa ao tratar do experiencial, do homem experiente”[14] .
Reale exortava em seguida :” Vamos nós filósofos, amar um pouco mais e descodificar a nossa língua. Vamos procurar na nossa linguagem o sentido do nosso filosofar, pois somente assim teremos um caminho seguro na indagação da filosofia luso brasileira”[15].
Em companhia da nossa irmã língua galega hoje, no termo deste magnífico congresso, faço votos para que efectivamente nos dediquemos a reforçar o sentido experiencial e especulativo das nossas falas, na abordagem universal dos problemas, com liberdade criadora e fecunda.
Nesta minha intervenção em que se recorda o passado, com saudade de futuro, algumas notas mais sobre o percurso de filosofia luso-brasileira.
Quando, em 1995, foi possível estudar Cunha Seixas e Farias Brito, em Fortaleza e, também, em S. Paulo, onde nos íamos integrando nos Congressos Brasileiros de Filosofia, António Paim fazia um balanço muito positivo mas lembrava que era preciso mais, salientando um aspecto essencial:
“Outro mérito dos nosso Colóquios é o contacto pessoal (subl. meu) entre professores brasileiros e portugueses. De nossa parte .estamos convencidos de que dificilmente compreenderemos o nosso processo cultural sem nos determos na identificação do património luso-brasileiro da filosofia comum”[16].
A convivialidade a que Paim se refere tem constituído, a meu ver, um dos esteios fundamentais do que conseguimos até este momento.
A convivialidade e a abertura ao debate talvez dificilmente encontrassem uma ocasião, tão significativa, como a que ocorreu no Porto, em 1996, com o generoso apoio da Fundação Eng. António de Almeida e da Universidade Católica iniciativa que se estendeu a Viana do Castelo e aos Arcos de Valdevez, por ocasião do estudo empreendido sobre Miguel Reale com a presença deste. Julgo que a melhor homenagem que se podia fazer ao Mestre foi, justamente, confrontar o pensador paulista com as suas próprias aporias e a sua meditação in actu.
O IV Colóquio dedicado a Miguel Reale tinha merecido uma preparação extremamente cuidada e a ele dedicou todo o seu esforço Afonso Botelho que, infelizmente, não pode estar presente, já, no Colóquio. Incluímos nas Actas, todavia, a sua Apologia de Miguel Reale que assim começa:
“O hábito social dos nossos dois Países não adoptou a apologia filosófica. A sobrecarga emocional com que cobrimos a maior parte da falta de consideração pelos outros, ou a mera codícia de interesses pelas coisas, recusam à apologia a participação no saber desinteressado, que a filosofia por natureza é. Reduz-se a apologia ao elogio, e este ainda, preferencialmente póstumo, porque assim o juízo de valor que se atribua já não fere tanto a inveja dos vivos e as suas naturais emulações”[17]. Não foi assim com este Colóquio e o próprio pensador estudado confessava encontrar-se “na vaidosa situação de ser sujeito e objecto de um diálogo”[18].
Entretanto, graças ao esforço de um dos pilares do edifício espiritual que temos construído, Luiz António Barreto, por ocasião dos 300 anos da morte do P.e António Vieira, procedemos em S. Luiz do Maranhão ao estudo do pensador universalista e futurante que, em breve, será objecto de renovada atenção no ano vieirino de 2008.
Mas, este Colóquio Antero de Quental escolheu, também, Brasília para apresentação de comunicações sobre o pensamento de Leonardo Coimbra. Alguma razão existia para que se unisse o pensador do criacionismo ao autor da História do Futuro: como então se anunciou: “O padre António Vieira, que nasceu em Lisboa no começo do século XVII, e morreu na Bahia, há exactos 300 anos, teve uma vida de pregador, revestindo de uma certa consciência pedagógica a sua pregação, e incorporando ao seu discurso um sentimento profundo de nacionalidade(...) Leonardo Coimbra, neste século, refaz o compromisso da fé que alimenta o criacionismo, como um dos pilares da doutrinação cristã, mantendo o interesse filosófico em torno da questão central da existência humana, no traço recorrente da espiritualidade. Neste último sentido, o da espiritualidade, Vieira e Leonardo Coimbra se aproximam, se tocam, se definem, ainda que a visão cultural do século XVI, quando ainda ecoava o feito das descobertas dos navegantes espanhóis e portugueses, e do século XX, que processou, no complexo de sistemas e ideias antagónicas, a síntese da história cultural humana”[19].
Com Leonardo, depois do estudo dedicado a Miguel Reale, os Colóquios tomaram o rumo de um maior contacto com a contemporaneidade luso-brasileira. Assim viria a acontecer, em Braga, na Universidade do Minho, com uma extensão a Viana do Castelo, para que se estudasse Vicente Ferreira da Silva. Havia uma razão específica para assim se proceder como António Braz Teixeira sublinhou num dos seus estudos, ao afirmar que Vicente Ferreira da Silva representava :“no pensamento contemporâneo do Brasil, o mais recente e o mais sólido elo da cadeia espiritualista cujas expressões anteriores haviam sido Domingos Gonçalves de Magalhães(1811-1882) e Raimundo Farias de Brito(1862-1917)[20]. Braz Teixeira sublinhava, igualmente, a convergência com o pensador português Eudoro de Sousa a quem demos, igualmente, a devida atenção. Sob a égide de Mito e Cultura os trabalhos sobre os dois autores seriam reunidos em Actas publicadas em 2001.
Sob a cúpula das nossas constelações, de um ir e voltar sobre o Atlântico das nossa razões e projectos, pode dizer-se que se firmava uma comunidade da qual significativos obreiros se encontram, aqui, nesta sala.
No Brasil, Luiz António Barreto e mais recentemente José Maurício de Carvalho, com o aconselhamento permanente de António Paim, tem estabelecido pontes e possibilitado espaços de diálogo e convivência imprescindível.
Conheci José Maurício de Carvalho, que me foi apresentado por Eduardo Abranches de Soveral, na altura em que aquele pensava fazer um estudo de Pós Doutoramento em Portugal, sobre José da Silva Lisboa( Cairu), o que viria, efectivamente, a concretizar-se no Centro de História da Cultura da Universidade Nova de Lisboa.
Antes de falar no trabalho notável que tem vindo a ser concretizado por José Maurício não nos podemos esquecer (e mais uma vez tem significado especial poder fazê-lo, aqui, no Porto) da obra de Eduardo de Soveral e meditar nas condições do diálogo espiritual e especulativo luso-brasileiro para que nos desafiava. Teremos, neste caso, que nos reportar ao seu intenso e fecundo trabalho realizado no Brasil, no Departamento de Filosofia da Universidade Gama Filho, através dos Cursos de Mestrado e Doutorado em Pensamento Luso Brasileiro nas décadas de 70 e de 80 do século passado. Ganhava, assim, uma dimensão mais ampla o projecto ideado por António Paim em torno do pensamento e da história das ideias no Brasil.
Como lembrou Eduardo Abranches de Soveral, entre as coordenadas metodológicas que mereciam a confiança do então Director do Departamento daquela universidade fluminense e em consonância com António Paim justificava-se que, para o Brasil, seria indispensável um “conhecimento exaustivo e crítico das raízes lusíadas da sua tradição cultural e um estudo sempre actualizado, do pensamento português; e que, paralelamente, do outro lado do Atlântico, e na observância da lição deixada por Sampaio Bruno no seu extraordinário Brasil Mental”, seria necessário que a vida intelectual brasileira se integrasse, igualmente, “no horizonte do pensamento lusíada“[21]. Verificamos que com António Paim, Abranches de Soveral preparava condições para um encontro de esforços que também por cá se faziam, de modo mais disperso, o que permite que agora possamos estar, brasileiros e portugueses, a continuar o desígnio de pensar em português. Nem queria deixar de observar a circunstância das considerações de Eduardo Abranches de Soveral terem sido transmitidas por ocasião do Congresso de Filosofia, realizado em Braga, em 1981, com a advertência de que só um trabalho semelhante, também entre nós, permitiria que a inteligência portuguesa tomasse “nítida consciência da sua identidade” e pudesse participar ”na plenitude das suas potencialidades, na génese da nova teologia, do novo humanismo, da nova cosmovisão, da nova cultura, enfim, que a era tecnológica urgentemente, exige”[22]. O seu livro Pensamento Luso-Brasileiro é não só uma colectânea de estudos e ensaios mas, também, uma densa proposta de investigação e criação com acontece, igualmente, com Formas e Percursos da Razão Atlântica: Estudos de Filosofia Luso Brasileira(Londrina, 2001), de António Braz Teixeira ,ambos na linha do apelo feito em O Estudo do Pensamento Filosófico Brasileiro(1986, 2ª edição), de António Paim que reflecte já o trabalho em comum, no Brasil, com Soveral. O facto de estarmos a falar de iniciativas matriciais do pensamento português e brasileiro dá-me, entretanto, a oportunidade para salientar uma iniciativa que, no âmbito das deslocações ao Brasil, os participantes portugueses tiveram o ensejo de conhecer e activamente participar. Refiro-me aos Encontros Nacionais de Professores e Pesquisadores da Filosofia Brasileira e que, até há pouco tempo, se realizaram na Universidade Estadual de Londrina, no Paraná, pela acção esclarecida e persistente, de Leonardo Prota, aqui presente. É incalculável o património que constitui a investigação e os debates realizados em Londrina que, a partir do 5º Encontro, passaram a acolher, substancialmente, o pensamento e os pensadores portugueses.
Um dos nomes brasileiros que participou muito activamente nestas reuniões foi José Maurício de Carvalho que, há pouco, lembrei a propósito do seu Mestre Abranches de Soveral e que nos honra, hoje, com a sua presença. Falar de José Maurício de Carvalho é falar não só dos dois Colóquios até agora realizados em S. João del Rei, nessa Minas Gerais de tanta memória lusa mas, também, do cuidado que lhe tem merecido pensadores portugueses, nomeadamente Delfim Santos e Joaquim de Carvalho e o seu entendimento de abertura a um âmbito hispânico que muito interessa, igualmente, a Ricardo Velez Rodriguez.
Em 1999, em S. Joâo del Rei, estudámos António Sérgio e a Delfim Santos e em 2006 na, agora, Universidade Federal promoveu-se um debate centrado no pensamento político luso-brasileiro que nos anos mais recentes tem vigorado.
José Maurício de Carvalho desempenha, hoje, um papel fulcral na viabilização de um projecto de pensar português em contexto luso-galaico brasileiro. Ele próprio o assume, atento sempre aos pressupostos metodológicos rigorosos, sem os quais não se atingem resultados mesmo que, como sabemos, eles se afirmam permanentemente problemáticos no campo da especulação filosófica.
Na etapa mais recente, as iniciativas conjuntas tem privilegiado o debate sobre o pensamento, a experiência e as formas políticas em Portugal e no Brasil, nos séculos XIX e XX, como se disse. As conclusões de Tiago de Adão Lara, da Universidade de Juiz de Fora, apresentadas no fim do último Colóquio Antero de Quental, realizado em 2007 podem, no entanto, aplicar-se a todo o nosso trabalho até agora realizado:
“ A tarefa de pesquisar e reflectir filosoficamente a experiência política dos dois povos, os movimentos que a expressaram institucionalmente e as reflexões filosóficas por eles suscitadas trouxeram à tona, alguma vez, certo mal estar, diria epistemologico- metodológico; até que ponto nosso pensar agarra o concreto da experiência, já que esta se dá numa ambiguidade, variedade e contradição inexprimíveis? Temos textos a interpretar. Mas o que é um texto, onde encontrá-lo, como definir seu contexto? A partir de que perspectiva ou de que perspectivas fazê-lo?”[23].
Como tem acontecido, no nosso já longo caminho de pensar em português é, precisamente, a chama das interrogações, da incessante busca de sentido do que se sabe ou procura saber, do que nos une e nos diferencia, que deve continuar a proporcionar a multiplicidade de propostas.
Fazendo algum balanço cabe dizer que, actualmente, sabemos mais sobre um legado especulativo que vem de D. Duarte, que se demorou em Pedro da Fonseca, (objecto de uma sessão dos Colóquios, na Universidade de Évora), que assinalou Vieira, que atendeu a quase todos os pensadores de referência de Portugal e do Brasil. Neste estudo sistemático se inclui o abrangente e hoje imprescindível instrumento de consulta que são os volumes de Actas relativos aos Colóquios sobre pensadores portuenses, à obra de António Sérgio, de Álvaro Ribeiro e de José Marinho, a atenção especial dedicada á obra de Leonardo Coimbra, tudo fecundas iniciativas que o Centro de Estudos de Pensamento Português da Universidade Católica, aqui, no Porto tem dinamizado e concretizado. E, por isso, será justo agradecer, nesta ocasião, à Universidade Católica e, nas pessoas de Arnaldo de Pinho e Afonso Rocha, felicitá-los pelos resultados que acabam de ser alcançados e são o garante de promissor trabalho futuro.
E, como o nosso caminho se faz dos necessários aprestos críticos, seria injusto esquecer, nesta hora, o que, muito especialmente, António Braz Teixeira tem possibilitado, com a sua esclarecedora política editorial da Imprensa Nacional-Casa da Moeda fornecendo instrumentos de trabalho e acolhendo tanto os autores consagrados como dando a conhecer novos valores.

O pensamento luso- galaico- brasileiro instaura-se, assim, como um projecto de crescente maturação e inegáveis possibilidades. Penso que à irmandade da fala e da saudade que nos une à Galiza se nos coloca, hoje, um desafio universal. Quer o Caminho de Santiago, quer o Cruzeiro do Sul são mais do que o encontro de olhares circunscritos a este ou aquele país ou povo. Aliás, muitos outras pátrias invocam aquelas constelações encontrando-se as da constelação do sul em bandeiras nacionais de outras matrizes culturais.
Mas, sob os astros do Caminho de Santiago ou do Cruzeiro do Sul certamente se fala português e galego e, por essa condição, destino e sensibilidade permitam-me que lance, hoje, um apelo para um projecto essencial e urgente: o de PENSAR EM PORTUGUÊS E EM GALEGO.

12 de Outubro de 2007

Notas
[1] António Braz Teixeira, Formas e Percursos da Razão Atlântica: Estudos de Filosofia Luso-Brasileira, Londrina, UEL, 2001, p.34.
[2] Reyes Mate, Pensar en español, in “El Pais”, 09.09.2007
[3] Andres Torres Queiruga, A saudade como “Stimmung” radical, in Actas do I Colóquio Luso_Galaico sobre a Saudade, Viana do Castelo, Câmara Municipal, 1996, p. 61.
[4] Cit. in António Paim, Das Filosofias Nacionais, Lisboa, Universidade Nova de Lisboa, 1991, p.34.
[5] Miguel Reale, Estudos de Filosofia Brasileira, Lisboa, 1994, p. 28.
[6] Cfr. Francisco da Gama Caeiro, Filosofia, Cultura e Natureza- Sob a égide de Tobias Barreto, in “O Pensamento de Tobias Barreto” Actas do Colóquio, Lisboa, Universidade Nova de Lisboa, p.128.
[7] António Paim, A evolução de Tobias Barreto e seu significado para a filosofia brasileira, Idem, p. 26.
[8] Joaquim Cerqueira Gonçalves, [Cultura e linguagem natural], Esposição, Idem, p.131.
[9] Luiz António Barreto, Palavras de Apresentação, in “Anais do Colóquio Antero de Quental”, Aracaju, Fundação Augusto Franco, 1993, p.12.
[10] José Luis Mora, El Seminario de Historia de la Filosofia Española e Iberoamerticana:Modernidad y tradución en Salamanca, in “La Cidad de Diós”(CCXV), Escorial,,2002, p. 1026, sep. [p.40].
[11] Paulo Mercadante, Achegas ao contexto luso-brasileiro, in “Anais do Colóquio Antero de Quental”, cit. p. 74..
[12] Idem, ib.
[13] Francisco da Gama Caeiro, Magalhães e o problema das filosofias nacionais, in “O Pensamento de Domingos Gonçalves de Magalhães- Actas do II Colóquio Tobias Barreto”, Lisboa, Instituto de Filosofia Luso Brasileira, 1994, p. 17.
[14] Miguel Reale, Rumos da Filosofia Luso-Brasileira, Idem, p. 385.
[15] Idem, ib.
[16] António Paim, in “Anais do Colóquio Antero de Quental dedicado a Cunha Seixas e Farias Brito”, Aracajú, Fundação Augusto Franco/Instituto Tobias Barreto de Educação e Cultura, 1997,pp. 12-13.
[17] Afonso Botelho, Apologia de Miguel Reale, O pensamento de Miguel Reale- Actas do IV Colóquio Tobias Barreto, Viana do Castelo, Câmara Municipal, 1998, p.19
[18] Miguel Reale, Sentido Ontológico do Dever Ser, Idem, p. 25.
[19] Texto de apresentação do IV Colóquio Antero de Quental dedicado ao Padre António Vieira e Leonardo Coimbra.
[20] António Braz Teixeira, O primeiro ciclo do caminho especulativo de Vicente Ferreira da Silva, in Ética, Filosofia e Religião- Estudos sobre o pensamento português, galaico e brasileiro, Évora, Pendor, p.201.
[21] Eduardo Abranches de Soveral, Pensamento Luso-Brasileiro- Estudos e Ensaios, Lisboa, Instituto Superior de Novas Profissões, 1996, p.14.
[22] Idem, p. 17.
[23] Tiago Adão Lara, Avaliação dos momentos mais significativos do VIII Colóquio Antero de Quental, in Atas do VII Colóquio Antero de Quental- Pensamento, Experiência e Formas Políticas em Portugal e no Brasil(séculos XIX e XX), S. Joâo del Rei, UFS, 2007, p.409.

4 comentários:

ANTONIO DELGADO disse...

Caríssimo e distinto professor, é com enorme satisfação que venho a este seu espaço de reflexão e deixar uma mensagem de felicitações e desejar os melhores êxitos neste mundo da cibernética.

Cordialmente
António Delgado

Unknown disse...

Meu estimado Mestre,

Embora tenha apenas dado uma pequena "mirada", felicito-o pelo espaço, onde pretendo voltar, se não com a frequência desejada, pelo menos com aquela que me for permitida.Mas hoje não podia deixar em branco, sem manisfestar uma mensagem de boas vindas.

Respeitosamente com carinho,

Conceição Teixeira
14 de Outubro de 2007

artur pinto disse...

Meu muito Prezado Amigo
Vi com muita curiosidade, depois com especial prazer.
Permita que o felicite por trazer a este espaço da net - e se mais não for, aos seus amigos e admiradores - o prazer de o poder ler.
Com o maior respeito e muita admiração, do seu "Companheiro"
Artur Ferreira Pinto

Luisacs disse...

EStimado e velho amigo
Visitei e vagueei pelo seu blog com grande interesse e prazer. Pensar em português... é um espaço aberto e muito útil hoje em dia, quando andam por aí tão boas cabeças ignoradas ou esquecidas. Continue. Conte com o meu apoio e colaboração se precisar.
Parabéns
Luisa CS